quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A Sugoleta e o Cavotário

Texto de Rute Rodrigues Sobrinho

Ilustração Luciana Meneses Delmonte
No bosque da ilusão os animais tentavam sobreviver a todo custo. A Sugoleta era um ser que necessitava psicologicamente de outro para se apoiar. Ela tinha asas e se alimentava dos fluidos vitais de seus hospedeiros. O ser preferido para isso era o Cavotário, espécie rara espalhada pelo mundo, que possuía grande carisma, muita carência e certa tolerância.  
Determinado dia Sugoleta viu um Cavotário passeando, todo falante, com sua típica corcova nas costas. Ela então se aproximou, conversou animadamente, sorriu e o cativou.
Feita a amizade entre os dois, ela pediu certo dia:
- Cavotário, você pode me carregar um pouco nas suas costas?
- Por que, Sugoleta? Você tem asas e pode voar – disse ele.
- Ah, deixa de bobeira, vamos brincar apenas – insistiu sedutoramente.
Com a permissividade de Cavotário Sugoleta subiu em suas costas, encaixou-se e não se desgrudou mais.
Embora a companhia dela não fosse desagradável, era muito cansativo para Cavotário levá-la em suas costas, ainda mais sabendo que ela podia se locomover. Quando notava o amigo chateado, Sugoleta levantava vôos e os dois contemplavam a beleza do bosque. Mas era por pouco tempo.
Cavotário vivia reclamando do incômodo, do peso e de ter que comer mais para alimentar os dois. Sugoleta, por sua vez, sentia-se cada vez melhor, mais forte, mais confiante. Fazia menos esforço, tinha um amigo e ainda se escondia atrás dele nas batalhas de sobrevivência da floresta.
Cavotário cansou de só reclamar e resolveu dar um basta nisso. Enquanto Sugoleta dormia profundamente em suas costas ele consultou a feiticeira Atitudys:
- O que eu faço para me livrar dessa amiga que na verdade é um estorvo pra mim? Perguntou.
- Você realmente quer isto? Confirmou Atitudys.
- É o que mais quero, preciso ser livre novamente – confirmou ele.
- Vocês estão grudados pela grande sintonia que existiu entre vocês no começo, depois continuaram pelo comodismo, e agora continuam por uma ilusória dependência. Se você quiser livrar-se dela só há um jeito...
-Diga-me. Farei qualquer coisa - respondeu Cavotário.
- Você tem que desejar profundamente não mais tê-la por companhia e os milhares de elos invisíveis que os prendem se romperão aos poucos - anunciou ela.
Assim ele fez por dias a fio. Desejou do fundo da alma libertar-se de Sugoleta. Continuou andando, andando e se sentiu mais leve. Estranhou. Olhou para trás e percebeu que estava sozinho. Como ficou feliz, saltitou alegre, correu pela floresta:
- Que beleza, que maravilha, como é boa a vida solitária e independente! – bradava aos quatro cantos.
Os dias se passaram, ele foi ficando sozinho e a tristeza chegou ao seu coração. Não tinha ninguém para conversar ou para brigar. Estava tão leve, talvez vazio. Começou a achar besteira reclamar da sua amiga, afinal de contas Sugoleta nem era tão pesada assim, conversavam sobre os bichos, sobre o clima, sobre as estações, sobre as intrigas do bosque. Se ele soubesse que seria assim...
Pronto. Sugoleta estava novamente em suas costas.
-Você voltou? Perguntou Cavotário.
- Claro que sim, você vivia chamando por mim. Estou feliz que estamos juntos novamente!
E os dois voltaram a ficar grudados mais do nunca.
A feiticeira Atitudys esqueceu-se de dizer um detalhe para Cavotário: da mesma forma que o pensamento dele afastava Sugoleta, ele também a trazia de volta...

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Sim, com certeza!

Texto de Rute Rodrigues Sobrinho

Ilustração Luciana Meneses Delmonte
Este final de semana tive o prazer de assistir ao casamento de dois amigos meus. Ele, ao ser perguntado se aceitava a noiva como sua legítima esposa, respondeu firme e alto: 
-Sim, com certeza!
Todos riram. Ele não queria deixar nenhuma sombra de dúvida do compromisso que estava assumindo. Ela, por sua vez, também respondeu:
-Sim, com certeza!
É linda a incessante busca pela felicidade! Este casal e tantos outros que assumem um compromisso sério como o casamento são muito corajosos, e não se deixam deter por mágoas passadas.
Alguns resolvem viver a vida como solitários, alegando uma dolorosa experiência de separação ou um amor não correspondido. Mas será que a solidão não dói mais? Ao serem perguntados sobre uma tentativa de futuro feliz, respondem com a mesma firmeza dos nubentes acima:
-Não, com certeza!
Outras vezes estes mesmos têm relacionamentos sem nenhuma profundidade, a ponto de não reconhecerem numa frase ou atitude as pessoas com quem conviveram tanto tempo.
Também não acho que as pessoas devam se arriscar como adolescentes inconsequentes, mas a verdade é que corremos risco em tudo que fazemos. E afinal de contas, onde e quando temos cem por cento de certeza em alguma coisa que fazemos? E ainda mais em se tratando de algo com tamanha colaboração do outro?
Espero, sinceramente, que todos nós possamos dizer sim, com certeza, para o amor, para a vida, para a amizade, para o trabalho, para as descobertas, para as novidades. Afinal, o maior risco é nunca tentar!

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Dinastia Fox

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho

Ilustração: Luciana Meneses Delmonte
No planeta Terrier havia umas criaturas parecidas com os cachorros que conhecemos na Terra. Eles, no entanto, eram dotados de inteligência, certa violência e sabiam se comunicar por meio da fala.
Dentre eles haviam vários tipos: magros, altos, compridos, baixos, com pinta, lisos, branco, preto, marrom e a Dinastia Fox, que possuía um chifre no meio da testa.
A Dinastia Bull, que governou há milhares de anos atrás, instituiu uma lei determinando que todos os habitantes daquele planeta não poderiam ter chifres, quem os tivesse deveria cortá-los.
Por muito tempo foi feito assim. No entanto, chegou determinada época em que ninguém mais se lembrava onde havia começado tal costume.
O fato é que os que tinham chifres queriam tirá-los de todo jeito porque achavam que ficariam mais bonitos sem eles. Para tanto, faziam cirurgias complicadas, às vezes em clínicas clandestinas e correndo risco de vida, para ficarem iguais a todos daquela sociedade.
Os poucos que resistiam a esse padrão estético formavam associações e tentavam convencer os foxianos a mudarem a ótica pela qual viam as coisas. O lema principal da associação era: se nascemos com os chifres certamente existe um motivo justo e útil para isso, mesmo que ainda não saibamos.
Pouco tempo depois o Planeta Terrier foi invadido por naves luminosas, com tecnologia muito superior às usadas naquele Planeta. Os extraterrienses procuravam seus conterrâneos há muito tempo raptados e levados para outro lugar. Chegando lá, demoraram-se muito para entender o acontecido. Na verdade, a característica marcante dessa raça mais evoluída era um chifre na testa. Com muita diligência, e porque havia alguns poucos resistentes aos padrões impostos, descobriu-se que os Fox tinham sido levados para aquele Planeta.
Qual não foi a surpresa quando viram seus cidadãos deformados. Houve muito choro e tristeza porque eles estavam mutilados e tinham perdido a capacidade de se comunicar. No Planeta Collie a comunicação era possível por ondas magnéticas transmitidas através do chifre.
Agora cabia a eles a escolha, ficar naquele Planeta em que eles não se sentiam aceitos ou voltar para o seu verdadeiro lar sem a capacidade de se comunicar...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Diana Krall - Quiet Nigts

Lentes cor-de-rosa

Texto de Rute Rodrigues Sobrinho

Ilustração de Luciana Meneses Delmonte
Já faz um tempo que Lília não encontrava uma amiga querida. Que saudade daquela pessoinha tão legal, pensava sempre!
Um dia encontrou-a por acaso na fila de um banco. Estava linda, elegante, segura de si, mais madura. As amigas se abraçaram carinhosamente.
Lília perguntou a amiga um monte de coisas, como estava no trabalho, sobre a família, os filhos, se estava namorando, sobre as conquistas.
Camila olhou-a com um olhar pouco profundo e disse:
-Lília, querida! Como você engordou!
Como alguém tem um comentário desses pra fazer quando se tem tanta coisa a perguntar, pensou Lília. Sua vida tinha mudado tanto, ela era outra pessoa, tinha se casado, separado, estava morando sozinha, comprado um apartamento, estudando inglês, com vários projetos.
Ela também havia notado que sua amiga Camila havia engordado um pouco, mas havia dez anos que não se viam, era até natural que aumentasse de peso, mas ela não ia ficar reparando nessas superficialidades, pelo menos não nesse primeiro encontro.
Lília, na verdade, tinha escolhido olhar a amiga através de uma lente cor-de-rosa, com doçura, amor, consideração, respeito. Ficou decepcionada com retorno tão realista e cruel. Afinal de contas, pensou Lília, ela própria tinha uma balança em casa e sabia exatamente quantos gramas havia engordado. A tristeza era pela dureza do olhar de Camila, tão crítico, tão grosseiro, tão materialista.
Depois de refletir sobre o assunto Lília percebeu que não era nada pessoal, que Camila optou por ver a vida dessa forma. Sempre ressaltava os defeitos ao invés das virtudes, era mais negativa, parecia que estava olhando tudo e todos com óculos cor de fel.
Já Lília era bem diferente, via a vida de outra forma, suas lentes eram mais suaves, via as virtudes, era sempre otimismo, e procurou ver a vida assim desde cedo.
Enxergar a vida de uma forma otimista não é fácil. Mas Lília é uma mulher comum e consegue, porque ela faz questão de ser feliz!

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Pão com caviar - entre supérfluo e o essencial

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho


Ilustração: Luciana Meneses Delmonte

Dona Maria tinha quatro filhos e seu marido estava desempregado. Como mãe, que nunca perde a esperança e a força por causa dos filhos, ela resolveu ir à feira.
O objetivo da mãe, na verdade, não era fazer as compras da semana, infelizmente. Em cada banca que eles parassem ela daria uma fruta a cada um dos filhos, como quem quisesse comprar, e esperaria o final da feira para pegar os legumes que ficariam espalhados no chão, às vezes pisoteados pelo povo. Assim, ao entardecer todos estariam alimentados e ela ainda traria ingredientes para uma sopa à noite.
Ao passar entre as bancas, diante daquela gritaria de feira, o seu filho Tião se perdeu. A mãe, no entanto, prosseguiu sem notar sua a falta.
O pequeno faminto andou vários quarteirões, se afastou da feira, chorou, procurou pela família e cansou.
O Sol estava a pino, a cabecinha dele começava a doer e estava zonzo de fome, afinal não tinha comido nada há dois dias.
Tião chegou numa rua pouco movimentada, onde existiam várias lojas de roupas, cosméticos, perfumes. Ele estranhou tudo, era bem diferente de tudo que ele costuma a ver. Sentiu frio apesar do Sol escaldante...
Três distintas senhoras viam em sua direção. Quando pensou em balbuciar alguma coisa, caiu desmaiado no chão.
Elas gritaram assustadas! Seria um assalto ou o quê?
O menino continua lá deitado...
Uma delas falou pra outra:
-Ajudem aí! Eu não posso porque acabei de sair do salão e pintei minhas unhas com aquela cor nova lindíssima da Dior – falou Guilhermina.
- Todas nós estamos arrumadas! Retrucou Valentina.
-Mas e se for o filho de alguém que trabalha com uma das nossas amigas da sociedade? É melhor ajudarmos ou não seremos mais convidadas para os chás de fim de tarde!
A discussão prosseguia e o menino começou a ouvir umas vozes bem ao longe, que chegavam cada vez mais perto. Quando enfim abriu os olhinhos, apenas murmurou:
-Quero pão!

domingo, 18 de setembro de 2011

Solidariedade

O vídeo abaixo é simplesmente maravilhoso!
Trata-se de uma competição de corrida entre alunos com alguma deficiência física. Um deles tropeça, cai e não consegue prosseguir. Os outros, inclusive o que já estava prestes a passar a faixa de chegada, retornam e o ajudam.
A vida é uma grande competição, sabemos. Cada um de nós, apesar de nossas dificuldades e defeitos, corre para alcançar os objetivos. No entanto, muitas vezes esquecemos o irmão que está ao nosso lado.
De que adianta chegar primeiro à custa de tanta indiferença com o sofrimento alheio?


sábado, 17 de setembro de 2011

Selah Sue - Raggamuffin

Paris

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho


Ilustração: Luciana Meneses Delmonte
Caros amigos,
Gostaria de ir a Paris um dia. Poder-se-ia pensar que é falta de motivação, de companhia, de dinheiro? Na verdade nem eu sei, mas tenho convicção de uma coisa muito importante: eu posso ir quando quiser.
Parece uma coisa boba o que estou falando, mas pra mim tem um significado muito especial. Quando eu era criança, por volta de sete anos, tive um sonho maravilhoso, em que eu ia a uma cidade linda, toda iluminada, com uma enorme torre chamada Eiffel. Quando acordei, ainda com aquela gostosa sensação, perguntei ao meu pai:
- Papai, existe uma torre chamada Eiffel?
- Tem minha filha – respondeu.
- E é longe daqui?
- Fica na França, num outro país.
- Eles falam igual a gente?
- Não, eles falam o francês. Por que tanta pergunta?
- É que hoje tive um sonho lindo e eu ia lá visitar essa torre, era tão bonito...eu quero ir lá um dia papai!
Meu pai me escutava como se escuta a uma autoridade, e dava tanta importância a essa minha história, quando falou:
-Então você vai minha filha.
Simples assim.
Na situação em que vivíamos na época, com tantas incertezas, dificuldades financeiras, ele poderia ter dito tanta coisa...
- Está doida, menina, não sabe da nossa situação, como vem falar em viagem?
- Hahahahaha! Agora deu pra sonhar com coisa de gente rica?
- Você não vai, minha filha, somos pobres, conforme-se.
No entanto, com tantas opções que ele tinha, preferiu a mais otimista, a que expressava seu amor por mim, pra me fazer feliz naquele momento. Não titubeou:
-Tenho certeza que um dia você vai visitar Paris.
- Mas não é caro, papai?
- É, mas você vai estudar e trabalhar. Vai ter dinheiro para viajar pra qualquer lugar do mundo!
Saí dali tão feliz, me sentindo a pessoa mais realizada do mundo, porque meu sonho um dia se concretizaria, assim disse o meu a quem eu dava tanto crédito.
Isso me fez tirar lições lindas pra vida. Quantas vezes as pessoas chegam até nós com dúvidas, mágoas, receios. Nós, dentre tantas coisas que poderíamos dizer, optamos por desestimulá-las, dizer que é assim mesmo, que cada um tem o que merece, que as coisas podem até piorar.
Que a nossa opção seja sempre dizer palavras boas e agradáveis e certamente essas pessoas nunca se esquecerão disso.

O diploma

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho

Uma menina chamada Fruto do Amor tinha um pai chamado Brasileiro Esforçado. Esse pai se atreveu a estudar tardiamente, já que quando jovem não lhe foi dada essa oportunidade. Ele tinha perto dos trinta e sete anos quando começou uma faculdade privada. Tinha uma esposa, cinco filhos, um salário mínimo, uma bolsa de estudos, contas e muita força de vontade.  
Toda vez que a menina pedia um presente, e ela nunca desistia, ouvia sempre a mesma resposta:
-Mãe, a senhora me dá uma Barbie no Natal?
-Dou minha filha, mas só depois que o papai se formar.
-Mãe, eu vou ter uma bicicleta um dia?
-Claro que vai, mas só depois que o papai se formar.
-Papai, eu vi um vestido lindo e ainda era cor de rosa, compra pra mim?
-Compro minha filha, mas tem que esperar eu me formar.
De tanto repetir aquela resposta, a criança imaginou na sua cabecinha o dia da formatura, o pai todo arrumado, cabelos penteados, de terno; a mamãe vestida num longo vermelho, absolutamente maravilhosa. Os dois num grande auditório e de repente chamariam o pai: - Senhor Pai Brasileiro Esforçado!
Imediatamente o pai desceria a escadeira com carpete vermelho, emocionado, suando frio, para receber seu presente por todos aqueles anos de estudo.
Na imaginação infantil de Fruto do Amor, seu pai chegaria ao palco, todos o homenageariam pelo esforço constante, de tantas noites estudando, de tantos momentos roubados da família e diriam:
-Parabéns, Senhor Pai Brasileiro Esforçado! Aqui está seu diploma.
Entregariam a ele, então, um enorme saco vermelho cheio de dinheiro. Dinheiro este que resolveria todos os problemas e compraria todos os presentes; mais, pagaria todo o esforço que ela viu o pai fazer.
Doce ilusão de menina...
A pobrezinha achou que se formar era trazer um saco de dinheiro pra casa. Afinal, tudo o que ela pedia só seria comprado quando o papai se formasse.
Explicaram a ela que aquela era apenas uma porta que se abria, e que viriam outros esforços, novas perspectivas. E ela pensou decepcionada:
-Meu Deus, é assim? Nunca acaba? A gente tem sempre que ficar fazendo coisas?
E eu respondo a Fruto do Amor.
As coisas não acabam, estamos sempre aprendendo, sempre correndo atrás de algo, de autoconhecimento, de conhecimento do outro, de aperfeiçoamento no trabalho, aprendendo a educar os filhos. Na verdade não há um momento na vida que recebemos um saco vermelho, nem mesmo ao final dela.
Posso dizer a ela, no entanto, que os presentes da vida são entregues à prestação. Um dia é a aprovação no vestibular, um curso superior concluído, um emprego, um grande amor, um filho querido, uma casa, uma viagem, um por do sol, uma boa conversa com os amigos.
Não vamos menosprezar os pequenos ou grandes presentes que a vida nos entrega dia-a-dia, eles é que formarão o nosso pacote de conquistas!

A psicóloga

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho

Outro dia minha sobrinha foi comigo ao consultório de psicologia onde faço minha terapia semanal.
Ela, muito curiosa, perguntou como era a sala, onde eu ficava sentada e fui respondendo a tudo.
Por fim, ela fez uma pergunta que, pela carinha de sapeca dela, devia ser um trunfo, um segredo guardado na manga:
- Titia, ela tem caderno e papel?
- Pra quê? – perguntei.
- Pra anotar tudo o que você fala, ora.
- Não precisa não, fofinha. Ela guarda tudo na cabeça.
- Ah não titia, assim ela nunca vai descobrir o que você tem!
Sorri bastante, porque o intuito não é descobrir o que eu tenho. Eu tenho vida, pais, sobrinhos, emprego, uma vida, problemas, amor, colesterol alto, saudade, computador, facebook, gordura localizada, TPM. Mas acho que ela queria dizer o que tem de errado por eu estar numa psicóloga.
Há um singular encanto nessa procura. A cantora Ana Carolina em uma de suas músicas diz que: “Minha procura por si só já era o que eu queria achar”.
Saber que podemos sempre nos redescobrir já é uma grande descoberta. Procurar saber sobre nós mesmos é um caminho sem fim.
Mesmo porque acho que eu morreria do coração se ela descobrisse tudo sobre mim. Que horror! E agora? E aí? Eu ficaria engessada nesses conceitos descobertos? E a possibilidade de mudar de opinião sobre as coisas, principalmente sobre as pessoas? Pra mim não tem uma coisa mais prazerosa do que conhecer uma pessoa e antipatizar com ela e descobrir que ela é uma pessoa maravilhosa. Que doce engano!
Quando resolvemos nos engessar, perdemos oportunidade de conhecer amigos maravilhosos, um grande amor que só apareceu depois do segundo divórcio, um trabalho diferente, um filho concebido na juventude que ainda não se conhecia. E ainda tem gente que bate no peito e diz: Eu sempre tive essa opinião e não vou mudar. Que pena...
Eu ainda quero mudar muito de opinião, conhecer coisas, amadurecer e mudar as perspectivas de vida quantas vezes for necessário pra que eu seja uma pessoa melhor. Eu não quero parar, me sinto pequena, tenho ainda tanto a aprender que me dá uma pena de viver somente mil anos!

Jóias de aprendizado

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho
 
Certa vez, uma excelente aluna de uma escola deparou-se com uma professora chamada Esmeralda. Ela era muito experiente no magistério, mas não tratava os alunos com a doçura necessária aos pequenos. Às vezes uma situação irrelevante tornava-se grande demais para ela e todos pagavam por isso.  
Nesta época Rubi estudava na 2ª série e tinha muita sede de conhecimento, era aluna sempre elogiada no colégio. Um dia, infelizmente, ela foi o alvo dos ataques da professora. Ocorreu que Esmeralda saiu da sala e deixou os alunos aos cuidados de Rubi. Com uma régua na mão, a pequena brincou com os colegas:
-Quem não fizer o dever direito vai apanhar! – disse sorrindo.
A professora retornou e a aula prosseguiu normalmente.
Qual não foi a surpresa de Rubi quando um bilhete vindo da escola chegou em sua casa solicitando a presença do pai ou responsável para conversar a respeito da indisciplina dela.
Pobre coitada! Quase morreu de vergonha, de raiva, sei lá do quê.  Afinal de contas ela era aluna destaque, nunca faltava às aulas e se comportava muito bem em sala.
O pai de Rubi, apesar do amor e doçura com que tratava os filhos, era rigoroso na educação e ela sabia que uma coisa assim não ficaria sem um castigo.
A pequena pediu a Deus com muito fervor para que o pai fosse capaz de entender o que aconteceu e ela não fosse injustiçada.
Quando o pai retornou, disse:
- Minha filha, quero que você saiba que o papai te ama muito. A professora me disse que você reiteradamente bateu a régua na cabeça de várias colegas, que sempre se comportava mal e ainda copiava os exercícios dos outros colegas, por isso tirava notas boas.
Rubi ficou indignada com a versão da professora. Foi a primeira vez que ela se deparava com a maldade humana. Quase não podia acreditar que alguém pudesse ser capaz de inventar uma mentira somente para prejudicar o outro, ainda mais uma criança.
O pai de Rubi a colocou carinhosamente em seu colo e pediu pra que ela contasse sua versão. Quando terminou, ela falou com a voz embargada:
- Papai, o senhor acredita em mim ou nela?
- Acredito na verdade que vi nos olhos de vocês duas!
Foi o dia mais feliz da vida de Rubi até então. Ela aprendeu no mínimo duas lindas lições para sua vida toda: as verdades são ditas com olhos e que Deus ouve todas as orações feitas com o coração, até mesmo de uma criança!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A sociedade das gaiolas

Autora: Rute Rodrigues Sobrinho

Ilustração: Luciana Meneses Delmonte
Num mundo distante, existia um local onde os seres que desrespeitavam as ordens eram trancafiados em gaiolas gigantes e permaneciam ali por determinado tempo. Esse sistema queria recuperar esses seres e acreditavam que a ociosidade resolveria tudo, pois parando o corpo, parariam também a mente.
Pix trabalhava como vigia neste local há muitos anos e tinha como certo que nenhum deles jamais poderia mudar.
No seu dia de folga Pix resolveu jogar com os amigos e ganhou um presente encantado. Ao chegar a casa, abriu a caixa e ali havia uma linda bola resplandecente que poderia destruir, a uma só ordem sua, um quarteirão inteiro. Ele logo pensou em destruir a sociedade das gaiolas, porque assim todos ficariam livres de seres como aqueles.
Pix comentou com sua família o intuito de usar o seu presente explodindo a sociedade das gaiolas. Seu sobrinho, no entanto, perguntou-lhe:
-Tio, mas todos lá devem morrer?
-Sim, todos – respondeu sem titubear.
-Mas será que nenhum deles tem solução? O sobrinho insistiu.
-Querido, trabalho ali faz muito tempo e tenho experiência suficiente para lhe dizer que não há nenhum deles que possa se regenerar.
-Tio, mas se existisse pelo menos um que merecesse viver o senhor mudaria de idéia?
-Até parece! Mas se tivesse pelo menos um, o que certamente não há, eu usaria meu presente para outra coisa.
Aquela noite, o menino foi dormir preocupado e pediu ao Ser Supremo daquele lugar que desse poderes especiais ao seu tio para que ele visse além do corpo físico, visse também a alma e as intenções.
O tio voltou a trabalhar e começou a ver coisas que antes ele não via. Parecia que ele tinha poderes especiais, porque agora conseguia enxergar profundamente um ser.
Pix achou tudo diferente naquele lugar. Uns seres tinham rostos monstruosos, enquanto outros eram vítimas de perseguidores invisíveis. Viu também alguns arrependidos, chorando muito; outros pedindo forças às divindades. Notou, por fim, uma luz ofuscante na última gaiola. Ele foi até lá para ver. Ao olhar entre os ferros da gaiola, viu um ser ajoelhado em posição de prece pedindo uma transformação para todos que habitavam ali.
O carcereiro voltou para casa chorando, como ele poderia ter generalizado uma situação que era tão peculiar a cada ser? A vontade de mudar de vida era subjetiva demais para isso!
Falou ao sobrinho:
-Não sei o que aconteceu hoje! Vi coisas profundas sobre cada um dos habitantes da sociedade das gaiolas e mudei de opinião, vou usar o meu prêmio para outra coisa.
-Que bom, tio! Estou muito feliz. Já sabe o que vai fazer com sua bola resplandecente?
-Ainda não – falou.
-Tenho uma sugestão – adiantou-se o sobrinho. O senhor lembra que a sociedade das gaiolas é a única que não consegue ver o por dos nossos três sois? Dois deles ficam escondidos atrás de uma grande montanha rochosa. Por que não explode a montanha?
E assim foi feito. A explosão da montanha permitiu que pela primeira vez todo aquele mundo visse os três sois existentes naquele planeta.
No entanto, Pix nunca mais viu as coisas como antes...